Um passeio gostosinho por Montmartre, o morro que encantou de Picasso a Dalí

Montmartre é um belo bairro de Paris, não há quem possa negar. Instalada no alto de um dos poucos montes da cidade, a região conserva um desenho urbano irregular, cheio de curvas, ladeiras, vielas estreitas – isso num cenário de ruas e casas de pedra, árvores e trepadeiras enfeitando jardins e varandas. Num final de tarde invernal, raios amarelados se lançam nas pedras velhas e cheias de histórias desse que hoje é um dos pontos turísticos mais instagramados da cidade.

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Fundos da Basílica do Sacré-Coeur, um dos pontos mais enturistados de Montmartre

Essa beleza toda já foi muito mais original do que é atualmente. Assediada pelo turismo que sua própria fama atraiu, na Montmartre de hoje, os paus-de-selfie desafiam a hegemonia dos pintores e desenhistas, que há mais de um século fazem parte dos tipos humanos que dão a cara do lugar.

Essa já foi uma parte bem pobre da cidade, irregularmente ocupada por trabalhadores que não tinham condições de morar na região central. O morro foi se adensando com barracos no final do século XIX. Nesse período, Montmartre era considerada uma bidonville, nossa velha e conhecida favela. E como no Rio se passou com os morros, olhares sensíveis perceberam alguma poesia e alguma beleza na miséria daquele lugar. Monmartre virou um lugar de artistas, poetas, escritores – dessa gente criativa e de hábitos noturnos e boêmios. A lenda do bairro estava criada. Picasso, Van Gogh, Dalí e Renoir certamente tropeçaram muito naquelas ruas de pedras.

Com a fama, veio a gourmetização. Já no início do século XX, o bairro começa a atrair os universais empreendimentos imobiliários, e a gente pobre pioneira, que deu a cara praquele lugar foi sendo empurrada pra dar espaço a casas e prédios higienizados. Daí pra virar a paixão dos turistas, só faltava o empurrãozinho da Amélie Poulain!

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Na foto acima, vista da Place du Tertre

Hoje, a muvuca de turistas se concentra na Place du Tertre, onde dezenas de artistas expõem seu trabalho e oferecem gravuras feitas na hora, e na Basílica do Sacré-Coeur, que tem qualquer coisa de bela e estranha, de deselegante, mas charmosa. A enorme Basílica foi construída entre 1875 e 1914, proposta pelos católicos como uma forma de redimir a memória da cidade do final sangrento da Comuna de Paris, período de pouco mais de 2 meses em que a capital foi gerida por insurgentes. A retomada da cidade pela oficialidade se deu em uma semana, com uma invasão arrebatadora, que deixou 30 mil mortos pelas ruas parisienses.

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Parede coberta de intervenções de arte urbana, na Place du Calvaire

Desse pedacinho, que apesar do fuzuê, não dá pra desviar, destacaria 2 cantos interessantes. Primeiro, a Place du Calvaire, onde está o Espace Dalí, com obras desse famosos surrealista. Ali, a vista do alto de Paris é belíssima, emoldurada pelos telhadinhos das casas de Montmartre. As paredes de pedra são cobertas de arte urbana, numa colorida sobreposição do moderno sobre o antigo. Quem quiser parar pra curtir um pouco la buena onda, esse é um canto mais sossegado, apesar de estar ao lado da badalada Place du Tertre. O outro destaque é a Église SaintPierre de Montmartre, uma das igrejas mais antigas de Paris (o prédio que vemos hoje é de 1174, já uma reconstrução – a igreja original é do século V, que por sua vez substituiu um templo dedicado a Marte, que data da ocupação romana). A igreja é uma das duas que mantém um cemitério paroquial – todos os outros foram eliminados por razões de salubridade no final do século XVIII, início do XIX (os ossos retirados desses cemitérios foram depositados nas Catacumbas de Paris, que hoje é ponto turístico pra quem tem estômago forte!).

Se você é como nós e gosta de fugir do burburinho, o que é gostoso mesmo é exercitar as panturrilhas rodando pelo bairro. Nós usamos como base um roteiro sugerido pelo blog Un jour de plus à Paris, mas fizemos algumas adaptações. O roteiro começa no metrô Anvers, linha 2. Dali, você é guiado pela vista da Sacré-Coeur, até a Place Saint-Pierre, de onde saímos pela direita, chegando no Halle Saint Pierre, antigo mercado, todo construído em ferro, que hoje abriga uma simpática livraria de arte moderna, uma casa de chá, e recebe exposições temporárias.

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Fachada do Halle Saint-Pierre

Seguimos pela rua Ronsard, até chegar numa escadaria, que dá acesso à rua Paul Albert, e nela caminhamos até o final, quando viramos à esquerda e pegamos uma nova escadaria, que dá nos fundos da Sacré-Coeur. Contornamos o fundo da Basília, e pegamos a rua do Chevalier de la Barre e depois dela, à direita, a rue du Mont Cenis. Nessa rua vale a pena reparar na gigante caixa-d’água, que compõe uma boa foto, junto com uma das torres da Basílica. No fim da rua, que dá pra mais uma escadaria, a vista para a periferia parisiense vale uma selfie.

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Café na Rue Paul Albert

Pegamos aí a rua Cortot, onde está o Museu de Montmartre (entrada a 9 euros), que dá acesso aos Jardins de Renoir e às vinhas de Montmartre (a única porção de terra vinícola remanescente por ali). Chegando à Maison Rose, imortalizada nas telas do pintor nativo Maurice Utrillo (1883-1895), que assina dezenas de telas que hoje compõem o acervo do Musée de l’Orangerie, pegue à direita na rua des Saules, até a Rue Saint-Vincent. Dessa esquina, dá pra ter uma vista completa das vinhas (Clos Montmartre). Ali também fica o antigo cabaré Au Lapin Agile, testemunho de que o bairro já foi uma importante zona de prostituição (aliás, do ladinho de Montmartre, na Avenida Pigalle, está o célebre Moulin Rouge, que hoje cobra a partir de 120 Euros por uma refeição acompanhada de um espetáculo musical). Volte pra esquina da Casa Rosa, e pegue a Rua de l’Abreuvoir, que vai dar na Place Dalida, homenagem à Madona francesa (laissez moi danceeeerrr!!!).

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Moinho que dá nome ao restaurante Le Moulin de la Galette

Dali, suba pela rua Girardon, que passa pela Place Marcel Aymé, onde está instalada uma obra do artista Jean Marais, com referência à obra Le Passe-muraille – daquele camarada que ficou preso numa parede, sabe? Na esquina da Girardon com a rua Lepic, resiste o último moinho original do bairro, ocupado hoje por um belo restaurante.

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Le passe-muraille, na Place Marcel Aymé

A esse ponto, suas pernas já estarão bem torneadas e doloridas. Hora de parar para um café. Em qualquer um que você escolher, certamente haverá uma história de que algum desses pintores famosos era habitué do estabelecimento. Pros românticos modernos, o café onde a Amélie Poulin trabalhava no filme fica a 5 minutos dali, na rua Lepic (Café Deux Moulins), mas vá sabendo que, sem a maquiagem cinematográfica, o estabelecimento não é muito diferente dos outros, com aquele jeitinho sujo e desajeitado dos cafés parisienses.

Bom dali, você se vira. A gente cansou e seguiu pela Avenida Junot, até chegar no ponto de ônibus que a gente queria, mas se ainda tiver pique, deixa o espírito dos bêbados que já passaram por ali te levar – só cuidado para não tropeçar!

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