Texto e fotos por Guilherme Quintão
A China é um grande acúmulo de tempos e de espaços. Um país que já deixou de ser o que era, sem tornar-se ainda aquilo que pretende ser. Comecei minha viagem em Pequim, segui para a histórica Xi’an e terminei a jornada em Shanghai, passando por Suzhou e Hangzhou.
A viagem por essas cinco cidades chinesas me ofereceu uma narrativa quase linear sobre o passado, o presente e o futuro desse imenso país, que hoje tem o maior PIB (PPP) e a maior população do planeta.
Conhecer Pequim é conhecer a história moderna da China, que, para essa civilização milenar, começa com a dinastia Ming, no século XIV, passa pelos quase 300 anos de domínio da dinastia Qing (etnia manchu) e termina com a proclamação da República Popular, pelo “chairman” Mao Zedong, em 1949.
Na capital chinesa, que hoje tem mais de 20 milhões de habitantes, são vários os passeios que remetem a esse período, como a colorida Cidade Proibida, gigantesca em suas dimensões e nos seus simbolismos; o Templo do Céu, tão sagrado que nem a poderosa imperatriz Cixi, a “Dragon Lady”, podia nele entrar, pelo simples – mas, na época, determinante – fato de ser mulher; o agradável Palácio de Verão, onde os imperadores da era Qing cultuavam o budismo e buscavam um raro frescor no auge do abafado verão pequinês; e – claro – a Grande Muralha, cujos trechos mais célebres e visitados foram construídos pela dinastia Ming e restaurados na década de 1980.
Em Pequim, destaque também para o Templo de Confúcio, que apresenta a base da filosofia confucionista e sua influência sobre a sociedade chinesa até hoje, e para o Colégio Imperial, onde jovens de todo o império estudavam e cumpriam as etapas finais da prova para ingressar no serviço público e ascender à elite burocrática local (sim, eles desenvolveram um sistema centralizado de “concursos” ao fim da dinastia Yuan, no século XIV).
Vale a pena também um passeio nos « hutong », áreas residenciais que mantêm o tradicionalismo das pequenas construções, ruelas, jardins e mercadinhos da China. Provavelmente em extinção, são enclaves de um estilo de vida comunitária em plano o centro da capital chinesa.
As quatro horas de trem de Pequim a Xi’an permitem ao turista aventureiro um recuo de mais 2.000 mil anos na história da China. Xi’an, capital da província de Shaanxi, é vista hoje como uma cidade média para os padrões locais (“apenas” 9 milhões de habitantes), mas já foi um dos maiores centros econômicos e comerciais do mundo, nos tempos da Rota da Seda, além de ter sido a primeira capital da China dinástica e unificada, no século III A.C.
Seu principal atrativo, o sítio que abriga os guerreiros de terracota, tem mais de 2.200 anos e foi descoberto por um pequeno agricultor, que, ao tentar perfurar um poço artesiano na década de 1970, viu-se cara a cara com um dos milhares de combatentes subterrâneos (ou com seus destroços…). Eles foram construídos para proteger a tumba de Qin Shi Huang, primeiro imperador da China unificada. As obras estavam destruídas pelo tempo e hoje têm sido restauradas, fato que não subtrai qualquer cota de magia do gigantesco mausoléu milenar, um verdadeiro espetáculo para os amantes da arqueologia e da história de nossa passagem pelo mundo.
Num salto de mil anos para a frente, Xi’an também nos permite identificar traços dos primeiros contatos entre os chineses e os seguidores do então recém-fundado islamismo, no século VIII D.C.. Ao melhor estilo chinês de integrar o que vem de fora sem preterir a identidade enraizada, o bairro islâmico de Xi’an hospeda um agradável bazar muçulmano decorado com dragões imperiais chineses e uma mesquita com minarete em forma de pagoda e escritos que mesclam o árabe com o mandarim. Tratam-se de símbolos não apenas dos fluxos migratórios que acompanharam toda a história da humanidade mas também de nossa capacidade, hoje tão abalada, de tolerar e de integrar o outro.
As cidades de Hangzhou e Suzhou merecem entrar no itinerário daqueles que viajarão por, no mínimo, duas semanas pela China. São duas cidades de dimensões “menores” (9 e 5 milhões de pessoas, respectivamente), mas que merecem atenção pelos estonteantes jardins e espaços verdes (West Park, em Hangzhou; Jardim do Administrador Modesto, em Suzhou), cujo ambiente harmônico e relaxante fez o navegador Marco Polo classificar a região como “paraíso na terra”.
Vale a pena um pulo no vilarejo de Tongli, próximo a Suzhou, conhecida como a “Veneza do Oriente”, por seus canais e passeios de gôndola. Menos turística e cara, mas tão deslumbrante quanto a cidade adriática, a cidadela é um ótimo escape da poluição e do caos urbano das megalópoles chinesas, que podem ser estressantes mesmo para turistas em férias. Tongli fica a 40 minutos de carro de Suzhou.
Na narrativa da viagem, Shanghai representa não apenas o passado recente de submissão da China às potências ocidentais como também o futuro de pujança e de desafios que se apresentam ao país. A história dos dois últimos séculos da China pode ser compreendida numa rápida olhada nas construções e nos monumentos às margens do Huangpu: a oeste do rio, na região de Puxi, encontra-se a China dos estertores da era Qing, o último governo imperial, que sucumbiu aos canhões europeus e americanos e permitiu que Shanghai se tornasse, no início do século XX, um dos principais centros financeiros e comerciais do mundo, mas também se visse diante da humilhação de ser dividida em concessões territoriais oferecidas aos ocidentais.
Hoje, a arquitetura da região lembra Londres, Nova York e seus edifícios de pedra, abrigando alguns dos melhores hotéis do mundo e restaurantes internacionais célebres, como o italiano Da Ivo, o salão de chá do chef francês Joël Rebuchon e o Crystal Jade, de Singapura. O charmoso bairro da antiga concessão francesa também é um destaque.
A farra ocidental em Shanghai chegou ao fim com a invasão japonesa durante a Segunda Guerra e, posteriormente, com a era inaugurada pela revolução de Mao Zedong em 1949, à qual a cidade dedica dois de seus museus mais interessantes: o museu do primeiro congresso do Partido Comunista Chinês, em 1921, e a galeria de posters raros de propaganda do regime comunista (recém-aberto).
Com a revisão da doutrina maoísta a partir da década de 1970 e a transformação de Shanghai em Zona econômica especial (ZEE) na década de 1990, a cidade parece ter encontrado seu futuro. A novíssima região do Pudong, a leste do Rio Huangpu, é um dos maiores exemplos de estilo arquitetônico futurista no mundo. Para observá-lo bem, melhor estar no famoso e requintado Bund, do outro lado do rio, e não deixar de reparar na grande ironia do “socialismo de tipo chinês”: uma imensa quantidade de bandeiras da China comunista hasteadas na orla, tendo como plano de fundo enormes arranha-céus espelhados e iluminados com emblemas de alguns dos maiores bancos do mundo.
A imagem revela a pujança e riqueza do presente, mas uma potencial incongruência futura entre a viabilidade do modelo econômico e a clausura do sistema político, que ainda proíbe os cidadãos de se expressarem em sua plenitude, conferindo privilégios e facilidades aos 90 milhões de filiados ao partido do governo.
De todo modo, a nova China parece ser uma realidade que veio para ficar. Um projeto de potência desenvolvida que ainda não se realizou plenamente, dados os grandes desafios da imensa desigualdade socioeconômica entre pessoas e regiões do país (em Shanghai, ouve-se o inglês na rua correntemente, enquanto em cidades menores, ocidentais ainda são parados para tirar fotos com locais, que nos observam como se fôssemos de outro planeta). Sem contar a dificuldade natural de se administrarem 1,6 bilhão de pessoas, concentradas em poucas dezenas de cidades da costa leste.
Mas falamos de um país que investe imensamente na capacitação digital e linguística de seus jovens – e isso não é pouca coisa. Crianças ostentam seu nível de inglês perguntando “how are you?” nas ruas e adolescentes pagam suas contas com o app local WeChat, uma espécie de WhatsApp de múltiplas funções (dica ao viajante: quase não se usa mais dinheiro em espécie no país, e há muitas notas falsas em circulação. Melhor baixar o WeChat tanto para se comunicar com celulares locais quanto para pagar contas).
O transporte ferroviário, ao menos entre as principais cidades, também é outro sinal de pujança no país: o trem de alta velocidade é tão rápido e moderno quanto os encontrados na Europa, embora as tarifas chinesas sejam um pouco mais caras na alta temporada (por volta de 60 euros por trecho). O transporte aéreo tende a ser mais estressante: voos são cancelados e atrasados com regularidade. Além disso, por causa do extremo controle do governo sobre deslocamentos de pessoas dentro do próprio território chinês, há check-points que lembram guichês de imigração na maioria das estações de trem e aeroportos, onde a apresentação de passaporte é sempre necessária.
Viagens de trem, embora tomem mais tempo (6 horas de Shanghai a Pequim, por exemplo), podem ser mais interessantes, por permitirem ver as paisagens tanto das pequenas fazendas de milho (ou arroz, ao sul) quanto de impressionantes cidades “fantasma”, com conjuntos habitacionais de arranha-céus construídos pelo governo – mas ainda não ocupados -, para abrigar as milhões de famílias excluídas do campo pela mecanização.
Viajei à China no verão e não recomendo o período. Trata-se de uma das sensações térmicas mais quentes que já experimentei na minha vida. As cidades do leste costumam ser muito úmidas e abafadas nesse período. Em Pequim, a poluição é vista e sentida facilmente, apesar dos esforços do governo em controlá-la. Em suma: se planeja viajar à China, melhor optar pelos períodos de abril/maio ou setembro e fim de outubro (os feriados do início de outubro podem tornar diversos passeios inviáveis, em razão da grande quantidade de turistas chineses).
As imensas diferenças de língua, costumes e práticas em relação ao ocidente constituem, ao mesmo tempo, as dificuldades e o encantamento com a China. Certamente, a viagem para lá não será relaxante – vide o sacrifício em se entender um menu de restaurante (eu sempre apostava nos “dumplings” de porco ou no pato laqueado – ambos são ótimos) ou em se barganhar qualquer compra de souvenir. Mas o ganho de vida e de conhecimento que se tem depois de alguns dias nesse país fascinante compensa e muito a viagem.
Quanto a minha visão sobre o futuro desse imenso país, acho que a China permanecerá com desafios típicos de um país em desenvolvimento nos próximos anos. Mas não se deve desprezar a capacidade de uma civilização que busca, há milênios, manter-se unida e forte ou, como gostam de dizer os locais, “realizar o grande sonho”.
Tenho a impressão de que os chineses não sabem bem qual sonho é esse, mas creem estar no caminho certo. E esse é um bom começo.